segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Crimes do futuro

Em sua coluna para o jornal Folha de S. Paulo, na última terça-feira (21/11), o brilhante escritor português João Pereira Coutinho discorreu sobre o obsessivo controle dos comportamentos dos cidadãos por parte do Estado e o consequente aumento do número de condutas passíveis de punição legal. Com a habitual ironia, mas sem descompromisso com  a realidade, imaginou cinco potenciais crimes que as futuras gerações terão receio de cometer:

1) Crime de imposição de gênero
Os pais deverão abster-se de identificar o gênero dos filhos tomando como referência o sexo biológico dos mesmos.

Durante os primeiros 16 anos de vida da descendência, as tradicionais distinções entre "feminino" e "masculino" serão abolidas —na linguagem, no vestuário, nos brinquedos, até na onomástica. "Ele" e "ela", por exemplo, darão origem à palavra "el@" (pronunciada "el-arroba", como em "El-arroba já voltou da escola?").

2) Crime de ódio privado
Qualquer cidadão que expresse preconceitos raciais, sexuais, culturais ou religiosos em privado poderá conhecer denúncia se alguma testemunha entender fazê-lo. Com a evolução tecnológica, os apartamentos serão obrigatoriamente equipados com sensores antiódio, bastante semelhantes aos sensores antifumo, diretamente conectados com a delegacia do bairro.

3) Crime de apropriação cultural
Serão severamente punidos os cidadãos que, alegando interesse cultural ou razões artísticas, se apropriem de práticas e temáticas de um grupo étnico a que não pertencem. (Exemplos: caucasianos preparando sushi; escritor asiático publicando romance sobre personagem negro).

4) Crime de envelhecimento público
Com os avanços da medicina, será intolerável que um cidadão recuse tratamentos/cirurgias para ocultar/reverter o seu processo de envelhecimento, exibindo em público as marcas da decadência física e/ou neurológica. A imposição da velhice à sociedade será equiparada a um ato obsceno.

5) Crime de interesse sentimental não solicitado
Será punido qualquer adulto que manifeste interesse sentimental não solicitado por outro adulto —através de sorriso, elogio, convite para jantar etc.

O interesse sentimental de um adulto por outro será mediado por um advogado que apresentará ao advogado da parte desejada as intenções do seu cliente. Só mediante autorização da parte desejada é que o proponente poderá avançar para contato telefônico ou digital.

Qualquer outro ato sentimental que envolva "risco de intimidade" implica obrigatoriamente a presença de um tabelião.

Os velhos de amanhã terão que estar inteiros.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Recado aos artificiais

Não, não e não!
Não me venham com falsas solidariedades.
Dispenso todas as falas mecânicas,
Enfadonhas, assim como vocês.

Não quero ser nada.
Vocês, que querem-me um homem de ambição,
Fiquem sabendo que não tenho nenhuma.
Por que haveria eu de ter alguma?

Desgraçados todos estamos,
Condenados à morte desde o início.
Não tornem o percurso tortuoso.
Que tal uma saudação ao vazio?

Por favor, evitem me procurar.
Estaria eu presente se quisesse!
Se me ausento, é por indiferença.
Tanto faz tudo isso...

Bons samaritanos:
Por que tão entediantes?
Que erro é ser muito correto.
Deixem-me aqui em paz!

Engulam o entretenimento barato,
Assistam às exibições mais chulas,
Mas não contem comigo!
Eu preciso estar só. 

Longe de mim com esses rostos variados!

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Algo a mais

Quanto mais as previsões acertam
Portas de singularidade se fecham
Quem conhece antes o outro lado
Vê o de cá com menos desagrado

Se as nossas andadas são triviais
Talvez precisemos de algo a mais
Para eliminarmos os prognósticos
De convívios um tanto distópicos

A mão que inventa também ataca
O licor empolgante causa ressaca
Perdão pela carência de otimismo
Dispenso autoajuda e esoterismo

Procuro razão para ter esperança
Poder então desfrutar da bonança
Desconfiando até mesmo do ouro
Grana vira pó, o moreno fica louro

Muito difícil satisfazer o indivíduo
Extirpando qualquer mau resíduo
Porque o desejo empurra à frente
Assim como ele dá o nó na gente.


Se imagina um futuro melhor que agora até ele chegar.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Ofereço a minha vida

Jim Jones, natural do estado norte-americano de Indiana, foi o fundador e líder do movimento religioso Templo do Povo, inaugurado em 1955, que combinava elementos do cristianismo com ideais políticos socialistas. Jones arrendou um terreno em meio à selva da Guiana duas décadas depois e se mudou para lá com centenas de seguidores.

Jonestown, nome de batismo da comunidade, possuía um espaço para que os habitantes plantassem verduras e legumes, bem como uma escola para as crianças. Praticamente não havia contato com o mundo exterior. Dissidentes relataram que o líder promovia um regime ditatorial, marcado por punições severas e a presença de guardas armados.

Alegando que serviços de segurança americanos conspiravam contra o Templo, Jones orquestrou um suicídio coletivo de caráter supostamente revolucionário. No dia 18 de novembro de 1978, em Jonestown, mais de 900 pessoas morreram após a ingestão de veneno misturado a um ponche de frutas. O comandante também ceifou a própria vida.

Trago à tona o trágico ocorrido para levantar algumas questões pontuais: qual o limite do poder de um líder religioso? Até que ponto vale a pena batalhar pela defesa de convicções políticas? Se matar em nome de uma causa é uma atitude nobre ou um irremediável equívoco? Fiquemos ressabiados com as figuras messiânicas do nosso país.

Jonestown após o suicídio coletivo de novembro de 1978.